O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Sejamos realistas, vamos fazer o impossível!


Quando a semana começou, comecei a preparar uma aventura para jogar com meus amigos. Minha intenção era criar um ambiente contemporâneo, um mundo como o nosso, porém um pouco mais opressor. A ideia era adaptar o cenário do livro Mago, a ascensão  para um momento intermediário entre o futuro distópico proposto por seus autores e os nossos dias. Comecei a esboçar algumas ideias de cenário e, de repente, terminei com este texto em mãos:

"(...) Tudo começa com uma necessidade, depois vem um plano e o tempo de realização. Foi assim que construíram o mundo em que nascemos. Tudo já estava construído quando eu cheguei, prédios que alcançavam os céus, naves espaciais, aviões, carros. Para ser sincero, tenho a impressão de que até a internet já existia, apenas não era como a conhecemos hoje - com acesso """universal""" e cheia de pornografia.

Quando eu nasci, o capitalismo já existia. Essa proposta síntese para a análise das coisas que é o Capitalismo. Alguns te dirão que "ele" é um sistema econômico, eu discordo. O Capitalismo está além das ideologias no presente e, portanto, não pode ser um sistema econômico simplesmente. Talvez até a virada do século XXI ele ainda fosse, mas não mais. Penso que ainda existia um esforço intelectual para separar as coisas, mas, hoje, ele parece vão.

Estudar a história humana me fez perceber que toda narrativa é ficcional. Mesmo a baseada em fatos reais. Você pode perguntar a qualquer cineasta que já trabalhou com o gênero Documentário que ele confirmará. O instituto Itaú Cultural costuma fazer anualmente o ciclo de cinema É tudo verdade em que os conceitos de realidade e representação da realidade são trabalhados através dos vídeos selecionados.

Realidade e representação da realidade. Conceitos que precisam ser descritos, explicitados. A sucessão lógica que cria este problema me parece surgir da seguinte forma: o homem cria a ciência em busca de melhor entendê-la, o homem cria a ciência para aproximar-se da natureza física e material do mundo. Para entender movimentos complexos que acontecem dentro da matéria, em suas partículas essenciais, o homem cria modelos didáticos elaborando referências, referentes e referenciais sintetizados em signos (pense no símbolo do coração que na sua formula mais simples tornou-se dois arcos se encontrando no vértice e na ponta). Um modelo de representação da realidade que a explica e se prova real, até esta teoria ser desmentida. Este é o processo científico, porém ele levanta a questão: se qualquer teoria pode ser comprovada como falsa, como sabemos qual é a definitivamente real? O modelo criado não dá conta de realizar isto.

No campo da ciência, pesquisa e extensão, então, seus estudiosos estão avisados do esforço vão, porém útil à vida cotidiana que estão exercendo. Entretanto, no mundo contemporâneo, o sistema econômico se desenvolveu de maneira a manter maior parte da população domesticada em seu habitat: entretida em suas televisões ou seus fetiches. Enquanto isso, tanto as partes mais ociosas quanto as mais preparadas são cooptadas a favorecer os interesses mesquinhos de quem lidera esta sociedade. H. G. Wells projeta, em seu "A Máquina do Tempo", um futuro (muito mais distante que esse) em que as classes sociais acabaram por se diferenciar tanto que espécies diferentes, herdeiras da humanidade, emergiram.

Assim a população segue desavisada e sem instrução. Mesmo formas de resistência embasadas em humor tendem a ser trágicas. O entretenimento barato limita-se às paredes da casa, à cidade só tem acesso quem tem dinheiro. A rede liga as pessoas em irmandades de ajuda e interlocução, porém também colabora com a formação de grupos de ódio e na reunião de pessoas preconceituosas. Os ânimos são inflados conforme a imprensa se importa com a política e os meios de comunicação de grande alcance são poucos e estão sobrecarregados de pautas, ainda precisando manter cadernos e tempo inútil para a vaidade diária, concorrendo assim com outros programas de entretenimento.

Mesmo o cidadão medianamente instruído é mantido em stress absoluto pela avalanche de notícias angustiantes jogadas junto de pandas, esportes e artes do jornal da hora par. Não há espaço para a rebelião, assim como não há espaço para a reunião, o encontro. Especialmente depois que as redes sociais conectaram todo o mundo. Meus amigos em Paris e no México parecem ter vida tão mais interessantes que a minha e de meus amigos.
Agora, isso vai mudar..."

Parece um mundo meio sombrio, não? Fiquei encucado com esse cenário, em tempo percebi que estava encucado porque ele é uma leitura possível sobre o mundo ao meu redor. Não era um cenário, era uma descrição. Construir cenários, históricos e mapas, não são simplesmente ferramentas narrativas, são reflexões complexas sobre o presente e o que entendemos como possível e impossível.
Explorar esses reinos forjados pela fantasia, pela necessidade de viver o irreal, é conciliar-se com o inexpresso sentimento que não cabe em formal alguma: palavra, sorriso ou grito.

Em nossa última reunião o Thiago estava me falando que ensinar com RPG, um método lúdico e vivencial, implicava em entender que aquele conteúdo também era recebido e decodificado de maneiras diferentes, maneiras essas que nem o professor, ou o narrador, muitas vezes, imaginam. Ensinar com um jogo não torna tudo um jogo ou uma brincadeira, pelo contrário: explicitas tramas e intrigas de ordem maior até do que a matemática, rainha de nosso modelo científico.

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